INOVAÇÃO TECNOLÓGICA PARA O DESENVOLVIMENTO... MAS
DE QUEM?
André
Antunes (15/05/2013)
Governo federal lança programa bilionário para estimular inovação nas
empresas e consolida direcionamento mercadológico da ciência e da tecnologia no
país
“É hora de pensarmos qual futuro queremos. Qual vai ser nossa inserção internacional? Qual será o perfil de nossa economia e do emprego que será criado para as novas gerações?”, indaga o documento ‘Compromisso pela Inovação’, divulgado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 2011. A resposta a essas perguntas vem logo abaixo: se deseja ter uma “inserção mais dinâmica na nova economia global”, o Brasil precisa vencer o desafio da inovação, “nossa capacidade de converter ideias em valor”, na definição da CNI, mobilizando “a criatividade, a tecnologia e a ciência para atender melhor demandas antigas ou resolver novos problemas”. Mas para inovar é preciso mais do que mobilizar o setor empresarial, é necessário um compromisso social, uma vez que a inovação, para a CNI é, ao mesmo tempo, um “tema próprio das empresas” e “uma agenda que interessa a todos, aos trabalhadores, à academia e ao governo”. Nesse processo, segundo a Confederação, cabe ao setor privado exercer um protagonismo, no sentido de “apontar caminhos que nos permitam organizar melhor o que fazemos e aprimorar a relação entre universidades e empresas, entre o governo e o setor privado. Significa também contribuir para melhorarmos nossas políticas públicas”.
Se as
políticas públicas estão sendo “melhoradas” com a influência da CNI e do
discurso que associa as inovações tecnológicas com o desenvolvimento econômico
é questão a ser discutida, mas o fato é que essa racionalidade, que coloca a
ciência e a tecnologia a serviço do mercado e as empresas privadas como atores
centrais no processo de desenvolvimento, é cada vez mais marcante nas falas de
membros do governo, do setor privado e da academia. A incorporação do termo
‘inovação’ ao nome do ministério dedicado ao tema em 2010 é um exemplo
prosaico, porém emblemático dessa tendência. Outro componente é o aumento
significativo, a partir dos anos 2000, dos recursos públicos destinados a
promover a inovação no setor empresarial, como você verá mais adiante nesta matéria.
E exatamente
essa área ganhou um reforço de peso em março, com o lançamento do programa
‘Inova Empresa’ pelo governo federal. O programa irá destinar, até 2014, R$
32,9 bilhões a projetos que visem a aumentar a competitividade das empresas
brasileiras no mercado internacional por meio da inovação tecnológica, através
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da
Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
O Inova
Empresa coaduna-se com as definições da Estratégia Nacional de Ciência
Tecnologia e Inovação (ENCTI), que coloca metas para a área no período
2012-2015 e tem como um de seus eixos orientadores a promoção da inovação nas
empresas, afirmando que “o fortalecimento da inovação empresarial com vistas ao
aumento da competitividade industrial continua a ser um objetivo comum,
especialmente em termos da elevação da produtividade, do crescimento do emprego
e da melhoria da qualidade de vida”. O documento estabelece diversas metas,
entre elas a de aumentar o dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento em
relação ao PIB de 1,19% em 2010 para 1,80% em 2014 e aumentar o dispêndio
empresarial na área em relação ao PIB de 0,56% do PIB para 0,90%.
Bolsa
Família da inovação
No lançamento, que ocorreu
durante uma reunião da Mobilização Empresarial pela Inovação – movimento da CNI
que atua no lobby sobre inovação junto ao poder público – no Palácio do
Planalto, no dia 14 de março, a presidente Dilma Rousseff afirmou que o
programa seria importante para tornar o país “menos desigual”, aumentando a
capacidade de a economia “ser produtiva e competitiva”. Antonio Elias,
secretário-executivo do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI),
explica que o crescimento do mercado consumidor interno, com a ampliação da
renda e do acesso ao crédito de “40 milhões de brasileiros”, permitiu
“impulsionar as cadeias produtivas brasileiras e também a área de serviços,
gerando uma expectativa e uma demanda maior por processos inovativos”. “O
Brasil se transforma numa plataforma para a América Latina, com possibilidade
de fazer um maior intercâmbio comercial com os países vizinhos desde que rompa
os movimentos restritivos ao crescimento da economia”, continua Antonio Elias,
para em seguida explicar: “o Brasil tinha uma baixa diversidade produtiva, uma
especialização na agricultura e na mineração. Hoje isso não é realidade: com a
área de serviços crescendo, a microeletrônica cresceu, impulsionada pela cadeia
do petróleo, a área de bens de capital cresceu, há um conjunto de outras áreas
que estão crescendo com agregação de valor”.
Durante o
lançamento, a presidente Dilma também destacou que o programa seria uma espécie
de “bolsa família” da inovação, integrando ações e recursos do governo
destinados à inovação que estavam dispersos. “Não havia uma matriz montada que
pudesse aglutinar toda uma capacidade de recursos e que estivesse numa mesma
vertente focada. O que fez o plano? Justamente pensar essas oportunidades,
articulando a política industrial com a política de ciência e tecnologia numa
matriz para corrigir as assimetrias existentes em setores e áreas
estratégicas”, afirma Antonio Elias. São sete as “áreas estratégicas” definidas
pelo plano, que deverão receber a maior parte dos recursos, R$ 23,5 bilhões:
cadeia agropecuária (R$ 3 bilhões), energia (R$ 5,7 bilhões), petróleo e gás
(R$ 4,1 bilhões), complexo da saúde (R$ 3,6 bilhões), complexo aeroespacial e
defesa (R$ 2,9 bilhões), tecnologia da informação e comunicação (R$ 2,1
bilhões) e sustentabilidade socioambiental (R$ 2,1 bilhões).
Pari passu
com algumas das demandas apresentadas pela CNI em seu Compromisso pela
Inovação, o programa tem como meta, segundo o governo federal, “o
fortalecimento das relações” entre instituições de pesquisa, empresas e setor
público. Para isso foi criada a Empresa Brasileira para Pesquisa e Inovação
Industrial (Embrapii), com investimentos previstos da ordem de R$ 1 bilhão até
2014. Segundo Dilma, ela deverá espelhar-se na atuação da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), promoverá um “casamento” entre instituições
públicas de pesquisa e as empresas privadas. Entre seus objetivos, estão a
promoção de “estratégias de inovação decorrente das demandas empresariais”, o
estímulo a que instituições de pesquisa realizem “prospecção de projetos empresariais
e arranjos cooperativos para inovação” e o estabelecimento de um “ambiente
favorável à formação e capacitação de recursos humanos”, tendo a inovação como
preocupação central. O Inova Empresa prevê que os projetos deverão ter
financiamento tripartite: um terço do governo federal – por meio de crédito,
subvenção ou recursos não reembolsáveis –, um terço da instituição de pesquisa
envolvida e um terço da empresa interessada. Cabe ressaltar: no caso de o
projeto envolver uma instituição pública de pesquisa, o governo acaba arcando
com dois terços do financiamento.
Inovacionismo
Para Rafael Dias, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o
programa não traz nada de novo em relação às políticas públicas que vinham
sendo implementadas na área de ciência e tecnologia nos últimos anos. “É mais
do mesmo, um programa que segue essa tendência que já vem sendo aventada a um
tempo de estimular a inovação na empresa, reconhecendo-a como o vetor do
desenvolvimento econômico. A ideia que está por trás é de que, com a criação de
determinados mecanismos, pode-se fomentar a atividade inovativa na empresa e
com isso vamos ter um aumento da competitividade das empresas brasileiras, que
traria desenvolvimento econômico e também social”, aponta Rafael. Segundo ele,
o que há de novo é o montante de recursos do programa. “A diferença para mim é
quantitativa, o volume de recursos que esse programa pretende mobilizar é algo
realmente que não temos visto no âmbito da política de ciência e tecnologia e
inovação no Brasil”.
Segundo
Rafael, a análise do que vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil mostra que o
processo que alguns autores têm chamado de assunção do “inovacionismo” como
modelo de política na área de ciência e tecnologia – do qual o Inova Empresa
representa mais uma etapa – vem ganhando força, com a injeção de cada vez mais
dinheiro público para fomentar a inovação no setor privado, com foco na
hipótese de que o desenvolvimento nacional vai advir da inovação empresarial.
Carolina Bagattolli, pesquisadora do Grupo de Análise de Políticas de Inovação
(Gapi) da Unicamp, explica que foi no bojo das privatizações de empresas
estatais brasileiras com as políticas neoliberais a partir da década de 1990
que teve início o inovacionismo no país, com a criação dos Fundos Setoriais, no
âmbito da Finep, a partir de 1999. “Os fundos setoriais foram uma forma de não
reduzir o investimento em pesquisa e o desenvolvimento com as privatizações,
porque das empresas que faziam essa atividade no Brasil a grande maioria eram as
públicas que deixariam de ser públicas. Eles surgiram como uma proposta de que
fosse compulsório que as empresas que comprassem as públicas separassem o mesmo
percentual de recursos para que eles fossem investidos em pesquisa e
desenvolvimento na área”, escreve, em sua tese de doutorado.
Segundo
Renato Dagnino, professor da Unicamp, até esse momento a pesquisa científica no
país era levada a cabo por instituições e empresas públicas, pautada no
interesse pelo desenvolvimento científico em áreas consideradas prioritárias
para a soberania nacional. “Temos marcos como a Petrobras e a Embraer, que
mostram que, no Brasil, foi possível desenvolver pesquisa original e ligar com
a produção de bens e serviços onde havia interesse do Estado ou de alguma
elite, mas que de qualquer forma passava pelo Estado”, diz. Segundo ele, isso
mudou com a chegada do neoliberalismo. “A partir daí, o Estado foi convertido
em vilão e a empresa privada no ‘demiurgo da modernidade’, que poderia salvar o
Brasil e conduzi-lo para o primeiro mundo, de forma que as políticas públicas
se orientaram para enxugar o Estado e endeusar a empresa”, ressalta. Segundo
Rafael Dias, aí começaram a secar as fontes públicas de financiamento para
pesquisa que existiam desde a institucionalização da política científica e
tecnológica no Brasil, com a criação da Capes e do CNPq, na década de 1950.
“Nesse momento, começou a ganhar força o uso do próprio termo ‘inovação’ no
discurso dos cientistas inclusive, como uma forma de legitimar uma mudança do
foco.Era algo mais ou menos do tipo: ‘se não podemos mais contar com o governo
para ter acesso a recursos vamos procurar outro parceiro, as empresas
privadas’”.
Aumento dos
recursos para a inovação
Como escreve Carolina em sua tese
de doutorado, os Fundos Setoriais elegeram a empresa privada como ator central
e os arranjos cooperativos universidade-empresa como a maneira de se promover o
financiamento e a execução da pesquisa científica e tecnológica pela empresa.
Seus recursos são destinados ao apoio de programas e projetos de atividades de
ciência, tecnologia e inovação, como a transferência de tecnologia e o
desenvolvimento de novas tecnologias de produtos e processos, de bens e de
serviços, entre outros. As empresas acessam o dinheiro de duas formas: a modalidade
recursos reembolsáveis, destinada ao financiamento de projetos de
desenvolvimento tecnológico em empresas, é operada na forma de empréstimos pela
Finep; na modalidade recursos não reembolsáveis, os recursos dos fundos
setoriais financiam, por exemplo, despesas para projetos de cooperação entre
universidades e centros de pesquisa com empresas e dá subvenção econômica para
empresas. Existem hoje 16 fundos setoriais, sendo 14 destinados ao fomento à
inovação empresarial em áreas específicas, como agronegócio, saúde, petróleo e
energia, entre outros, e dois transversais: um voltado à promoção da interação
universidade-empresa e geração de inovação empresarial e o outro destinado a
apoiar a melhoria da infraestrutura de instituições de pesquisa. O número de
projetos financiados pelos fundos saltou de 204 em 1999, que totalizaram R$
78,4 milhões em investimentos, para 5.486 em 2010, totalizando R$ 1,6 bilhão,
segundo dados do MCTI.
O aumento significativo no
montante investido pela Finep por meio dos Fundos Setoriais ao longo dos anos
2000 corrobora a visão dos pesquisadores que veem uma inflexão forte em direção
ao inovacionismo a partir da primeira década do século 21 no Brasil. Carolina
Bagattolli destaca outros marcos importantes nessa trajetória que aconteceram
nesse período: a Lei da Inovação, de 2004, e a Lei do Bem, de 2005. A primeira
é entendida como uma ferramenta jurídica para facilitar as “parcerias” entre
universidades e empresas. Segundo Renato Dagnino, também professor da Unicamp,
a relação universidade-empresa já estava presente desde a institucionalização
da política científica e tecnológica no país. “Ela era uma política muito
preocupada em consolidar a chamada infraestrutura cientifico-tecnológica:
formação de recursos humanos, pesquisa básica. Era uma política linear porque
acreditava que existia uma cadeia linear de inovação — que se faz pesquisa
básica, depois aplicada, depois há o desenvolvimento econômico e depois o
social —, coisa que lamentavelmente ainda faz parte do discurso de boa parte da
comunidade científica. Ela era também ofertista porque considerava que cabia ao
governo e à comunidade de pesquisa oferecer recursos humanos e conhecimento e,
ao fazê-lo, a empresa passaria a incorporar esses resultados de pesquisa e
recursos humanos. Isso não aconteceu, só em poucos casos onde a iniciativa
estatal estava por trás”. Segundo Carolina, isso muda com o fortalecimento do
discurso da inovação. “Quando começou esse discurso mais inovacionista a
discussão era de que a inovação era um processo complexo e sistêmico e não
linear. Uma das implicações disso é que não é adequado a universidade
transferir conhecimento para a empresa, ela tem que produzir conhecimento junto
com a empresa”, compara.
Essa é a visão do secretário-executivo do MCTI, Antonio Elias. “Eu não preciso
ter o pesquisador dentro da empresa, as empresas em geral querem os
laboratórios de que elas podem se servir e querem fazer projetos cooperativos
porque assim diminuem custo, porque um doutor na empresa subentende eu pagar o
salário, INSS, etc. Eu não preciso ter o pesquisador dentro da empresa, ela tem
que se servir do pesquisador”, afirma. O resultado disso é a baixa absorção de
profissionais com pós-graduação pelas empresas privadas, como aponta Renato
Dagnino: “Enquanto formamos 90 mil mestres e doutores em ciência dura, ou
seja, engenharia, física, química, biologia, tudo aquilo que a empresa
necessita para se tornar produtiva ou competitiva, entre 2006 e 2008, nesses
três anos, diferentemente do que seria de se esperar só 68, de 90 mil, foram
assimilados pelas empresas brasileiras. Então, isso mostra de forma
irretorquível que a empresa brasileira não faz pesquisa”, destaca. Aqui é
importante ressaltar para não haver dúvidas: foram apenas 68 mestres e doutores
assimilados pelas empresas privadas entre 2006 e 2008, e não 68 mil.
Preocupada em estimular as parcerias entre universidades e empresas, a Lei da
Inovação, promulgada em 2004, trata dos incentivos à inovação e à pesquisa
científica e tecnológica nas empresas a partir de três eixos: a constituição de
um ambiente propício a parcerias entre universidades, instituições de pesquisa
e empresas; o estímulo à participação de instituições de pesquisa no processo
inovativo e o estímulo à inovação na empresa. Como explica Carolina em sua
tese, a lei possibilita às instituições de pesquisa compartilhar seus
laboratórios e estruturas físicas com empresas para o desenvolvimento de
atividades voltadas à inovação tecnológica, celebrar contratos de transferência
de tecnologia e de licenciamento de direitos de uso ou exploração de criações
desenvolvidas pela instituição, prestar serviços em atividades voltadas à
inovação e à pesquisa científica e tecnológica em empresas e conceder aos seus
pesquisadores licença não remunerada de até três anos, renovável por mais três,
para constituir empresa inovadora. A lei ainda prevê que União, instituições de
pesquisa e agências de fomento à pesquisa promovam o desenvolvimento de
processos e produtos inovadores nas empresas mediante concessão de recursos
financeiros, humanos, materiais ou de infraestrutura. “O aporte de recursos
financeiros pode se dar sob a forma de subvenção econômica, financiamento,
participação acionária, ou através de ‘encomendas tecnológicas’ por parte do
governo”, escreve Carolina.
A Lei do Bem, por sua vez, dispõe sobre incentivos fiscais para a inovação
tecnológica, entendida como “a concepção de novo produto ou processo de
fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao
produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de
qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado”.
Rafael Dias explica que o conceito mais tradicional de inovação é o atribuído
ao economista Joseph Schumpeter, que a entendia como um novo produto ou
processo produtivo que a empresa faz “para se diferenciar temporariamente das
suas concorrentes no mercado e gerar uma situação de desequilíbrio de
concorrência que permite que ela explore um lucro diferenciado por determinado
período de tempo”. Rafael completa: “A inovação é intrinsecamente ligada ao
mercado, à obtenção de lucro”. Segundo ele, embora o governo federal não adote
explicitamente o conceito de inovação proposto por Schumpeter, ao colocar o
foco das políticas no mercado, como na definição da Lei do Bem, mostra que essa
formulação tem aderência na esfera pública. Dentre os incentivos fiscais
previstos por essa lei estão: reduções de imposto de renda e da Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), redução de 50% do Imposto sobre Produtos
Industrializados incidentes sobre equipamentos e maquinas destinados à pesquisa
e desenvolvimento tecnológico, entre outros.
Segundo Carolina, a Lei da Inovação e a Lei do Bem institucionalizaram os
mecanismos de subvenção econômica à inovação no Brasil, com a concessão de
recursos não reembolsáveis para empresas públicas ou privadas que desenvolvam
projetos de inovação considerados estratégicos, que resultaram em um aumento
significativo dos recursos públicos destinados à inovação empresarial por meio
da renúncia fiscal. De R$ 953 milhões em 1998, esse montante passou a R$ 6,7
bilhões em 2012, segundo dados do MCTI reunidos por Carolina, que destaca que,
em 2010, a renúncia fiscal total do governo federal associada a essas isenções
foi equivalente a 90% de todo o dispêndio em ciência e tecnologia realizado
pelo MCTI. “Ou seja, os incentivos concedidos às empresas mediante a renúncia
fiscal foi apenas 10% menor do que os recursos aplicados pelo MCTI em todos os
seus programas (87 no total)”, escreve ela.
Resultados aquém do esperado
Mas qual foi o resultado de tanto investimento? A Pesquisa de Inovação
(Pintec), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com apoio
da Finep e do MCTI, dá algumas pistas. Segundo Carolina, é possível ver ali
dados que corroboram o discurso oficial, que comemora, por exemplo, o aumento
dos gastos das empresas em pesquisa e desenvolvimento, que passaram de R$ 2,19
bilhões em 2006 para R$ 8,62 bilhões em 2010. “Isso poderia significar que a política
esta alcançando o resultado que pretende, mas a questão está numa análise mais
fina, quando olhamos não só quanto mas como ela está gastando e de onde vêm os
recursos”. Segundo ela, o gasto das empresas nessa área como proporção do PIB,
deduzidos os valores de renúncia fiscal, vem decrescendo nos últimos anos,
passando de 0,25% em 2008 para 0,19% em 2010. “O que a gente observa é a
substituição de recursos, as empresas não estão investindo mais e sim menos. O
que significa que esses recursos públicos estão sendo usados como substituição
e não têm o efeito multiplicador que o governo gostaria”. Além disso, aponta
Carolina, a parcela das empresas inovadoras que fez pesquisa e desenvolvimento
caiu de 33% em 1998 para 11% em 2008. “Mais do que isso, a percepção das
empresas inovadoras com relação à pesquisa também caiu: em 1998, 34% das que
inovaram e fizeram pesquisa acharam que ela era de alta e media importância, em
2008 esse número caiu para 12%”, ressalta. Reflexo disso foi que apenas 0,7%
dos produtos e 0,2% dos processos industriais foram considerados novos para o
mercado mundial em 2008. Além disso, como destaca Rafael Dias, as políticas de
ciência e tecnologia e inovação implementadas hoje no Brasil advogam um
conceito de inovação muito amplo. “Por exemplo, a definição da Pintec considera
inovação como algo que é novo para a empresa. Pode ser que, em uma determinada
indústria, uma empresa seja a última a gerar um novo produto ou processo. Ainda
assim aquilo é considerado uma inovação”. De fato, os dados da Pintec mostram
que a principal atividade de inovação de cerca de 60% das empresas consideradas
pela pesquisa nos últimos dez anos foi comprar máquinas e equipamentos.
Em sua tese, Carolina procurou entender justamente o porquê desse comportamento
do empresariado brasileiro. “Temos uma inserção no capitalismo bastante
periférica: seis produtos primários respondem por 50% da pauta de
exportação: café, minério de ferro, petróleo bruto, soja, carnes e
açúcar”, aponta. Segundo ela, além de não demandar grandes aportes de
conhecimento e tecnologia, essa produção também contribui para o quadro de
desigualdade social existente no país, por estar a produção de bens primários
concentrada nas mãos de poucos produtores. “Mesmo com todas as melhorias na área
social, ainda somos um dos países mais desiguais do mundo: 50% das famílias têm
até um salário mínimo para sobreviver. Até 2010, o eletrodoméstico mais
presente nas casas era um rádio. Tem uma demanda reprimida de produtos que já
existem. Quando a gente pensa em inovação, a ideia é produzir um novo produto
para um mercado de massa. Estamos num país onde metade da população tem esse
perfil de renda e onde, além disso, a pauta de consumo da população dos mais
ricos é exatamente a pauta de consumo dos países avançados. O carro dos sonhos
do milionário brasileiro é o carro dos sonhos que já existe na Europa, o
celular que todo mundo quer no Brasil é o celular que já existe lá fora. Não
tem por que inovar”, aponta Carolina.
Inovação e interesse público
Renato Dagnino complementa, argumentando que o comportamento da empresa é,
portanto, racional do ponto de vista competitivo. “No entanto, a comunidade de
pesquisa diz de uma forma muito enfática que eles são atrasados, que não sabem
o valor da pesquisa. Se temos um parâmetro para avaliar um empresário, esse
parâmetro é a taxa de lucro e, sendo assim, o brasileiro está entre os
melhores, e por isso não faz pesquisa”. Segundo ele, os dados mostram que a
política de ciência e tecnologia voltada para o favorecimento da empresa é
“contrafática” e contra a racionalidade do capitalismo. “Enquanto estamos
gastando dinheiro numa coisa que não vai ocorrer e que caso ocorresse tenderia
a agravar e não a melhorar a desigualdade, nós não estamos gastando recursos
para desenvolver tecnologia e formar recursos humanos na área que chamamos de
tecnologia social, por exemplo”. Ele chama a atenção para a disparidade na
alocação de recursos no interior do MCTI: “O ministério tem uma recém-criada
Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social, mas ela absorve apenas
2% do orçamento; as empresas levam 40%, a comunidade científica 30% e outros
28% vão para grandes projetos de interesse do ministério, como submarino
nuclear, projetos na área de defesa”.
Rafael Dias segue a mesma linha: “Com o Inova Empresa, não são apenas R$ 30
bilhões que estão saindo do governo e indo para as empresas, são R$ 30 bilhões
que estão deixando de ir para outras coisas, como escola pública, hospital,
universidade e todas essas coisas. Com esse discurso de que qualquer ciência é
boa, as pessoas não questionam muito a legitimidade desse tipo de destinação do
recurso público”, alerta. Mas ele acha que essa ideia deve ser colocada em
discussão. “Sabemos que determinada tecnologia favorece mais a um grupo do que
a outro. O bonde elétrico, que já circulou por muitas cidades brasileiras, foi
aposentado faz tempo em nome do carro. Isso é um exemplo de tecnologia que
favorece a alguns interesses, como as montadoras de automóveis e quem tem mais
dinheiro para comprar um carro, e desfavorece aqueles que poderiam se
beneficiar do transporte público”, diz o professor da Unicamp. Rafael afirma
que outro fator que evidencia como as políticas públicas nessa área atendem a
interesses particulares é a análise do que elas deixam de contemplar. “Planos
como esse preveem, por exemplo, estímulos à produção do etanol, então
claramente atendem interesses de grandes produtores rurais, mas nele não estão
contempladas demandas sociais mais amplas. Por que não vamos contemplar
inovações para combater problemas associados à pobreza, à exclusão social,
desenvolver processos adequados para cooperativas, para pequenas propriedades
familiares? É significativo pensar também naquilo que deixa de estar presente
na política pública”, opina.
No artigo ‘Sobre a mercantilização da ciência: a dimensão programática’, Marcos
Barbosa de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP), defende que
o conceito de inovação é o cerne da principal estratégia neoliberal para
promover a mercantilização da ciência. Para ele, a alocação de recursos
públicos para a pesquisa nos moldes do inovacionismo afeta negativamente o que
ele chama de “ciência do interesse público”, entre outros domínios. “A ciência
do interesse público pode, para nossos propósitos, ser definida como a ciência
direcionada pelo interesse público, especialmente os dos setores mais pobres da
população, e voltada para os problemas não susceptíveis de superação pelos
mecanismos do mercado. Em muitos casos, os resultados de tais pesquisas não
apenas não geram aplicações rentáveis, mas prejudicam os lucros das empresas”,
escreve Marcos, dando como exemplos várias áreas com interface com a saúde,
como os problemas ambientais, os riscos das novas tecnologias como os
transgênicos, as consequências “nefastas” do modelo tecnológico da agricultura
e, mais especificamente, a medicina preventiva, que procura avaliar o impacto
sobre a saúde humana das várias formas de poluição, e das substâncias químicas
encontradas nos alimentos, bem como as chamadas doenças negligenciadas,
que afetam majoritariamente as populações dos países pobres, carentes do poder
aquisitivo necessário para tornar rentáveis as pesquisas voltadas para seu
tratamento ou prevenção. Dados da Associação da Indústria Farmacêutica de
Pesquisa (Interfarma) mostram que o setor investiu em todo o mundo US$ 63,2
bilhões em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em 2007. No entanto, um estudo
intitulado ‘G-FINDER’, que faz um levantamento sobre o financiamento mundial de
inovação para doenças negligenciadas (custeado pela Fundação Bill e Melinda
Gates) mostrou que os investimentos nessa área somaram apenas US$ 2,5 bilhões
naquele ano. Um exemplo é que, dos 1.556 novos remédios registrados entre 1975
e 2004, apenas 21 foram desenvolvidos para doenças negligenciadas que, de
acordo com a OMS, são responsáveis por 12% da carga global de doenças e afetam
cerca de 1 bilhão de pessoas em 149 países. Além disso, continua Marcos em seu
artigo, apenas 10% do montante investido em pesquisa pela indústria
farmacêutica vai para doenças que afetam mais os países pobres, onde moram 90%
da população. “Não é difícil entender isso, no capitalismo o interesse é
acumular capital e não necessariamente isso vai ser compatível com o que a
população espera em termos de atenção a demandas por saúde. Basta você ver o
que é desenvolvido em termos de medicamento: em que a indústria investiu uma
fortuna? Remédio para disfunção erétil”, aponta Kenneth Camargo Júnior,
professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (IMS/Uerj), que vê com preocupação a predominância do discurso da
inovação. “Temos que pensar o quanto isso está ligado a uma concepção
privatista da questão da propriedade intelectual, que é outra grande fronteira
de batalha no mundo inteiro, que bate na questão das patentes. Esse modelo de
patentes para a indústria farmacêutica vem sendo crescentemente criticado”,
diz, chamando a atenção para o perigo que o sigilo exigido pelas empresas
acarreta para a área da saúde pública. Ele cita um exemplo que, embora tenha
acontecido nos Estados Unidos, ilustra bem a importância da livre circulação do
conhecimento na área. “Houve um caso de dez anos atrás que ficou célebre: uma
empresa que estava fazendo um ensaio de uma droga para tratamento de doença
fibrocística, e em dado momento, a médica pediatra que era a investigadora
principal de um dos ensaios clínicos viu que a droga estava criando problemas
hepáticos graves. Ela suspendeu o ensaio e divulgou isso para a imprensa. O
resultado é que ela foi processada pelo laboratório que estava produzindo a
droga por conta de uma cláusula que ela assinou que proibia a divulgação da
pesquisa. Isso está cada vez mais frequente, e essa coisa do interesse do
sigilo é frontalmente contra uma peça chave da ciência, que é a livre
circulação do conhecimento. Essa é uma coisa que me preocupa”, diz.
Rafael Dias identifica o mesmo problema na penetração das empresas nas
universidades públicas. “Há uma crescente participação de empresas privadas em
convênios de pesquisa, empresas financiando projetos de pesquisa em
universidades públicas, com participação de alunos de pós-graduação. Em algumas
universidades começamos a observar uma pratica que é nova e está ligada a esse
processo, que é a defesa de teses a portas fechadas. Quer dizer, o sujeito está
produzindo conhecimento em uma universidade pública, usando infraestrutura
pública e defende a tese a portas fechadas porque tem segredos industriais
envolvidos. É um exemplo pontual, mas é extremamente simbólico de como esse
processo de privatização do espaço público esta se dando de forma muito sutil”,
alerta.
Kenneth também aponta a questão do conflito de interesses como preocupante
nesse cenário de inserção da empresa privada nas instituições de pesquisa. “Há
alguns anos houve uma reunião do comitê da associação cardiológica americana
que decidiu que o valor ideal para o colesterol tinha que ser abaixado em um
miligrama por decilitro de sangue. Ao fazer isso, instantaneamente o
mercado potencial de consumidores de estatina [droga para o controle do
colesterol] pulava de 13 milhões para 36 milhões. Isso só nos Estados Unidos,
imagina no resto do mundo? Ai descobriu-se que dois terços dos médicos que
faziam esse painel eram financiados por indústrias que produziam estatina”,
relata Kenneth, completando: “Não dá para ser ingênuo e achar que o mercado dá
conta de todos os problemas”.
A análise dos dados da Pintec permite deduzir que os recursos públicos
direcionados para a inovação não estão tendo um efeito multiplicador como o
governo almeja, como aponta Carolina. “As empresas estão deixando de usar
recursos próprios e de financiamento para usar recursos de subvenção e isenção
fiscal. Então é bastante compreensível a CNI e outras entidades empresariais
defenderem a manutenção e mesmo o reforço desta estratégia: que empresário não
gostaria de substituir recursos próprios por públicos, principalmente os que
não exigem o reembolso à instituição financeira, como é o caso dos incentivos
fiscais e subvenção?”, indaga. Além disso, completa Carolina, as empresas têm
seguido uma tendência de investir os recursos públicos em atividades que,
embora sejam consideradas inovativas, não geram novos produtos e processos e
acabam agravando a dependência externa ao fiar-se na importação de conhecimento
tecnocientífico, como é o caso da compra de máquinas e equipamentos. Para
piorar, como aponta a pesquisadora, para ser considerada brasileira, basta que
a empresa tenha sede no Brasil, fazendo com que as multinacionais também tenham
acesso aos recursos de fomento à inovação. “Como as empresas brasileiras não
têm por padrão inovar, quem usa os recursos em geral são multinacionais,
fazendo com que, por exemplo, a Nokia e a Motorola, entre outras tantas
multinacionais, tenham acesso à subvenção no Brasilo que é ainda mais
gritante”, explica.
Márcia Teixeira, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), critica o que chama de “superfinanciamento” da inovação. Segundo ela, o Brasil está emulando o modelo norteamericano, onde 70% dos pesquisadores estão empregados nas empresas, que contam com laboratórios industriais, situação que não é identificada no Brasil. “Aqui, em geral, a saída das empresas é dizer ‘vamos fazer pesquisa através de parcerias com o público’, o que significa utilizar a infraestrutura, os pesquisadores, técnicos e tecnologistas de universidades e centros de pesquisa. É um superfinanciamento para as empresas. Além daquele que você está dando por meio da subvenção e isenção fiscal, tem uma parte que é invisível, porque se usa o lado público”, ressalta.
Publicado por
Prof. Heber Odahyr